Adriana Rocha
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PARAÍSOS
A pintura de Adriana Rocha
Na pintura de Adriana Rocha, a série denominada Paraísos dura já alguns anos. Em face dessa constância, vale indagar por que coloca sua obra sob o domínio do paradisíaco. Adriana fornece a pista para uma aproximação afetiva. Conversávamos em seu atelier. Repentinamente, ela vai ao armário e de lá retira um livrinho gasto de tanto manuseio. Sob o título Jardins et Paradis, o compêndio ilustrado abrange do Paraíso bíblico aos jardins criados pelo homem, desde os jardins suspensos da Babilônia até os parques públicos do século XIX. Trata-se do segundo volume da coleção La Galerie Pittoresque (pitoresco: próprio para ser pintado) editado pela Gallimard em 1959. Foi na companhia da mãe que Adriana fez a descoberta do mundo familiar e misterioso dos jardins. Da infância na fazenda ficou-lhe a familiaridade com a natureza, mas foram as imagens do livro que nela despertaram o sentido do maravilhoso. O fascínio da menina pelas ilustrações deixou o aprendizado do francês (objetivo materno) em segundo plano. A forte impressão que os planos e perspectivas, as alegorias, os registros botânicos e os ornamentos como fontes, estátuas e grades lhe causaram explica a origem de muitos signos que hoje aparecem em seus quadros.
Em anotações escritas recentemente, Adriana menciona o labirinto – microcosmo ao mesmo tempo aberto e fechado – como metáfora para compreensão do seu trabalho. A idéia do labirinto, que em essência simboliza uma busca, me leva a pensar no escritor Jorge Luis Borges, já que esse tema lhe era tão caro. Logo me vem um poema seu que começa com a pergunta: Houve um Jardim ou foi o Jardim um sonho? Ele segue indagando se aquela lembrança fugidia não seria apenas a busca de um consolo, e a história de Adão, de sua felicidade e queda, senão uma mágica impostura de Deus. Ao vagar entre fantasia e realidade, o poeta toma a incerta trilha que vai dar ao mito: o Éden do qual estaríamos exilados. Esse jardim já é impreciso na memória, porém eu sei que existe e perdura, ainda que não para mim. Dessa recordação lhe vem, simultaneamente, a crença num lugar paradisíaco e a nostalgia por sabê-lo inacessível. A memória vem associada à perda -o Paraíso perdido de que nos fala a Bíblia – assim como a imaginação supre uma ausência. Esse oscilar entre o imaginado (devaneio ou sonho) e o perceptível (a experiência empírica do mundo) sugere a instabilidade do real, tema que permeia toda a poética borgiana.
Assim como na poesia de Borges, a pintura de Adriana contém um traço nostálgico. Nas telas, as imagens surgem como fragmentos de um imaginário; são signos que recorrem. Como dizia Barthes, um signo é aquilo que se repete. Sem repetição, não há signo pois não poderíamos reconhecê-lo, e é o reconhecimento que funda o signo. Entretanto, nada mais contrário à arte contemporânea que tomar o signo como simples reflexo das coisas; nem a fotografia se sujeita a isso. É dessa ambigüidade, da tensão permanente entre a representação e o mundo, o eterno e o transitório que a pintura de Adriana se alimenta. Seus quadros são campos vazios onde assomam figuras que parecem prestes a desaparecer. Na quietude dessas teias há como que um rumor proveniente do transitar silente das imagens. Esse movimento virtual remete à fugacidade dos signos surpreendidos no espaço pictórico como se flagrados na memória.
E tudo começa com um fundo negro onde a artista agrega alguma textura usando gesso e pigmento. Continua sobrepondo finas camadas de branco. Sobre a tinta úmida, por vezes borrifa água que retira com pano ou deixa escorrer em sucessivas operações até que a cor entra diluída, criando nuances, sem contudo perturbar a condição etérea, a atmosfera atemporal onde a figura se insere e flutua. Não há limitação desse espaço, a impressão é de que se estende para além das bordas do quadro. Quando coexistem duas ou mais imagens, nada indica um nexo formal ou narrativo entre elas; estão ali como poderiam não estar, a qualquer momento submergindo ou deslizando para fora do nosso alcance. Sem alarde, Adriana subverte o suporte da pintura e desestabiliza a tradicional relação figura/fundo. Como não há encenação ou organização compositiva, a idéia do quadro como “janela” também perde validade. Esses procedimentos dão conta do modo particular como a artista incorpora os avanços alcançados pela arte moderna sobre a representação pictórica tradicional e colocam sua obra no campo problematizado da pintura contemporânea.
Em seus quadros, apesar da aparente recusa de sentido, as imagens continuam a exercer uma inegável sedução. A presença descontextualizada das figuras – aparição fantasmática – e a combinação aleatória de elementos provenientes de repertórios diversos provocam estranhamento. Fotos, delicadas construções geométricas, croquis, pedaços de tecido, estampas veiculadas pela comunicação de massa convivem sem se tocar como planetas transitam no universo. Da iconografia dos jardins retém certas vinhetas – a rosa, o buquê; a planta exótica, o plano do labirinto, o ramo – dos jornais, retratos de personagens desconhecidos, dos desenhos, detalhes ampliados. Esses “recortes”, por um lado sugerem o recurso da colagem, por outro o negam, já que o todo não se constrói pela junção das partes. A pintura para Adriana é um meio difuso, etéreo, feito de bruma ou de prata, atravessado por imagens. O espaço que engendra não põe limites, não enquadra; o que nele aflora é imagem-recordação, não propriamente subjetiva mas cultural. O retorno das imagens exorciza o sentimento de perda associado à passagem do tempo.
setembro, 2001
Maria Alice Milliet
texto para catálogo de 2001