Adriana Rocha

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AQUILO QUE SE ESVAI

A série nasceu em janeiro de 2002, foi sendo trabalhada ao longo do ano e até quase as vésperas da abertura da presente exposição, Adriana se aplicava na elaboração dessas grandes telas. Tudo indica que não houve esgotamento desse seu fazer. São procedimentos reiterados de acumulação e perda, de adensamento e desgaste que vem utilizando há muito tempo, num aprimoramento de linguagem, agora próximo da maturidade. Nesse vai e vem constante, nessa maré que ora cobre ora desvela, acontece o poético em sua obra, essa potencialidade da forma que o artista acolhe contra o senso comum, deixando o sentido fluir em múltiplas direções.

Para Adriana, "o interesse pelo uso da imagem, sua pertinência dentro da pintura e a conseqüente busca de um espaço, dentro da obra, que a contivesse, foram sempre os pólos geradores do trabalho". Ela mesma reconhece que "essa busca é complicada, especialmente se pensarmos em seu percurso, da Renascença (e antes dela!) à arte contemporânea, mas compreensível, se levamos em conta o fascínio que a figura nunca deixou de exercer". Problematiza a sobrevivência da imagem na pintura e, em última instância, trabalha a ambigüidade da própria pintura no mundo da comunicação de massa. Na longa duração, reconhece a atração exercida pela figura, sedução a qual o homem de hoje - mesmo que diante um simulacro - se rende.

A crise da pintura, é sabido, inicia-se em meados do século XIX com a invenção da fotografia e agrava-se com o avanço da técnica fotográfica e de outros meios de reprodução da imagem como o cinema e o vídeo. No interior da pintura, a representação analógica perde terreno, desconstruída a princípio, depois abolida pelas vanguardas artísticas cada vez mais interessadas nas relações plásticas e cromáticas próprias da criação pictórica. Representar o visível deixa de ser um compromisso da pintura. A figura, entretanto, resistiu ao banimento, retornando à pintura com a incorporação da fotografia a partir das colagens cubistas, dadaístas e surrealistas até a grande absorção de imagens da cultura de massa promovida pela pop art. Ao findar o século XX, a fotografia, em revanche, assume um lugar de proeminência nas artes visuais. Sua participação nesse universo é ambígua.

A obra de Adriana Rocha é um bom exemplo da complexidade desse campo onde na atualidade se imbricam pintura e fotografia e outros tantos meios de produção visual. De imediato, seus quadros atraem pela presença de imagens (ainda que desgastadas) nas quais se reconhece o mundo visível, submetidas a um tratamento pictórico rico em nuances e texturas a lembrar a velha e boa pintura. Na verdade, o que se vê resulta da associação de técnicas tradicionais como a veladura a outras, estranhas à tradição: a fotografia, o transfer, a estamparia a quente (hot stamp), o lixamento. Adriana começa por preparar a tela, recobrindo-a de preto. É desse fundo negro que irá surgir a névoa pálida que pouco a pouco recobre a maioria de suas telas. Nessa bruma feita de finas camadas sobrepostas, erodidas aqui e ali para deixar entrever cores antes depositadas, flutuam imagens fantasmáticas. Imagens que vêm de fotos que Adriana tira, fotos antigas ou recortadas de jornal, depois ampliadas e transferidas para o novo suporte. Quem olhar esses grandes quadros (de até 3mts de comprimento) com atenção irá perceber traços de uma retícula que corresponde às bordas das folhas A4 impressas uma a uma até recompor na tela a imagem dividida. Nesse processo bastante artesanal de transferência, perde-se a nitidez, fica a imagem gasta.

Mais do que a aparência evanescente das figuras o que perturba o observador é não ter onde ancorá-las: os meninos, a jovem, os rostos aparecerem soltos, isolados, sem quaisquer referências ambientais. São personagens desconectados da narrativa que a pintura tradicional habitualmente sugere; figuras ensimesmadas, imobilizadas no tempo, como que encantadas. Nas vistas, os barcos parados junto à linha do horizonte, a galeria vazia tudo parece estar sob igual encantamento. Ao flagrar pessoas e cenas que flutuam fora da história, Adriana propõe a suspensão dos nexos, um não lugar, uma espécie de limbo onde as figuras surgem como farrapos da memória.

Nessa série, aquilo que se esvai contrasta com aquilo que resiste. Ou seja, a "vitalidade" da imagem permanece apesar das circunstâncias adversas a que foi submetida, em particular quando se trata de imagem fotográfica como acontece na maioria dos quadros dessa série. Vale lembrar que no ensaio sobre a Retórica da imagem, Roland Barthes chamava atenção para o caráter testemunhal da fotografia e de como essa capacidade de registro do real instaura uma nova categoria espaço-temporal. Isto porque a fotografia "instala não uma consciência do estar lá da coisa (que toda cópia poderia provocar), mas uma consciência do ter estado lá". Isto explica porque vendo uma foto somos levados a pensar: tal pessoa foi assim ou tal fato existiu. Esse vínculo com o real, que, entretanto, já desapareceu, é tão forte que a imagem fotográfica ainda que exaurida remete sempre a uma realidade ainda que inacessível.

É na tangência entre a permanência e a perda que Adriana faz sua pintura. Em seus quadros paira uma certa nostalgia da integridade da imagem (talvez a nostalgia da pintura e do mundo que representava) combinada à exploração dos limites de seu reconhecimento, da sua força de persuasão.

Verão de 2003

Maria Alice Milliet

Texto para catálogo de exposição na Galeria Nara Roesler, São Paulo