Adriana Rocha

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PAISAGENS REAIS

O mundo visual de quem vive enfronhado na aridez urbana é estilhaçado. Em geral mediado por algum anteparo que se interpõe a cidade e o olhar. Para muita gente, o campo visual se restringe na maior parte do tempo a chão e muros. E divisórias, divisórias e divisórias (as da casa, as do escritório, as do transporte, as dos equipamentos urbanos etc.).
O regime de clausura se reproduz até na internet, pensada como uma estrutura de biblioteca, com "caminhos" que em geral são "trilhados" repetidamente. Assim como as brechas do mundo virtual, os pedaços de céu e de paisagem que se entrevê ao caminhar pelas ruas das metrópoles são praticamente invisíveis. Esta cegueira urbana costuma ser o mote de certo discurso crítico nostálgico, segundo o qual arte pública não existe mais , a escala da cidade não tem como ser enfrentada nem há como competir com a onipresença da publicidade: intervenções artísticas na rua seriam um gesto ingênuo, fadado ao fracasso. A cidade engole tudo - é o grande clichê - e num piscar de olhos. Não é de hoje que a arte lida com efemeridades de muitos tipos (dos materiais orgânicos usados em instalações ao irrepetível ruído de uma interferência em painéis eletrônicos) e desmaterializações. Apagamentos e esquecimentos são o modus operandi da arte.

E, no entanto, artistas no mundo inteiro preferem a rua. Ou aliam a atuação dentro e fora do circuito de arte. E, no entanto, artistas optam pelo mínimo, quando não pelo silêncio. Adriana rocha concebeu um projetos para a cidade de São Paulo de pintura mural em pontos bastante afastados entre si. ela queria muros, esse mínimo denominador comum do enclausuramento urbano, como suporte para uma pintura a ser "negociada". Negociação que ocorreu tanto com as subprefeituras de cada região escolhida como com o próprio espaço depois de definido o local onde seria realizada a pintura. A escolha do "muro" tem relação com a tradição do muralismo, com a prática do grafite e da pichação, mas principalmente com a ideologia da fortificação. O muro é um monumento à disciplina e ao medo. Presídios, escolas, manicômios, hospitais, condomínios fechados são impensáveis sem muros. E um artista preenchê-lo com uma representação da natureza diz muito a respeito desta mentalidade da fortificação. esta ação como que propões um paradoxo: um respiro de paisagem na impermeabilidade do concreto. Um intervalo na cinzenta paisagem urbana. Não é à toa, entretanto, que a escolha da palheta tenda ao cinza, pois, não se trata de "embelezar" a cidade e, sim, dialogar com ela. Realizadas sobre monumentos à disciplina e ao medo, as pinturas de Adriana Rocha são opostos do monumental.

Enquanto o monumento funciona como um símbolo concreto de ma memória reconstituída e imposta [Critical Art Ensemble], as "Paisagens Imaginárias" ensejam a criação de novas memórias, pessoais e intransferíveis. E possibilitam o apagamento: estão ali para serem tragadas pela cidade.
No que consistiriam tais memórias criadas? a partir da transformação, ainda que efêmera, de paisagens no Tucuruvi (zona norte0, sob o viaduto Antártica (zona oeste), nos Campos Elíseos (centro), e na Penha (zona leste), a intervenção de Adriana Rocha, junto com Nino Rezende, instaurou marcos provisórios, que podem ser entendidos tanto como as relações estabelecidas entre os moradores e usuários daquele espaço e os artistas no período de tempo em que estes trabalharam no local quanto como vinculo estabelecidos entre as pessoas que passaram a conviver com determinada "Paisagem Imaginária".

As histórias de vida são inenarráveis, tem mesmo algo da Natureza da experiência estética, mas vão da família de sem-tetos que por vezes dormia sob o viaduto Antártica e, tendo um dia se perdido - mãe e filha ficaram dias sem se ver, voltou a se encontrar "debaixo da arvore", até o dono de um pequeno comércio em frente o Mercado Municipal da Penha, que relutante em aceitar que aquilo que os artistas pintavam sobre o muro do mercado pudesse ser considerado uma paisagem, uma vez que não havia cor, deslumbrou-se ao ver que as árvores do terreno ao lado como se confundiam ao painel durante o entardecer. em que sentido as intervenções ensejariam também a possibilidade de apagamento? O trabalho assume de saída a especificidade do contexto em que está inserido: este de er um pintura no espaço público, passível de deterioração e vandalismo - sem prever um projeto de prevenção ou restauro. A voracidade da Metrópole, entretanto, não é tão imediata como se imagina: três meses depois de concluído o primeiro painel, a pintura permanecia praticamente intacta, com um ou outro rabisco.

Ainda outra característica de "Paisagens Imaginárias" que distancia o projeto daquele discurso crítico nostálgico referido no inicio do texto: a aposta na "cultura da recombinação", que o coletivo Critical Art Ensemble define assim: "Numa sociedade dominada por uma explosão de 'conhecimentos', explorar as possibilidades de significado naquilo que já existe é mais premente do que acrescentar informações redundantes (mesmo quando produzidas por meio da metodologia e da metafísica do 'original')". As paisagens de Rocha e Rezende partem de referências as mais diversos: da pintura clássica de gênero a Gerhard Richter, da colagem de imagens da mídia a Sebastião Salgado. Tudo sampleado e ressignificado.

2004

Juliana Monachesi

texto para catálogo do Projeto Público “Paisagens Imaginárias”, São Paulo