Adriana Rocha

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A PINTURA ALÉM DA PINTURA

Adriana Rocha pinta.

Expressão de três décadas de um fazer constante, suas pinturas são campos etéreos povoados por imagens, envoltas em sutis variações tonais de muitos brancos. Entre uma camada e outra, Rocha vai tecendo uma materialidade pictórica difusa na qual fragmentos de imagem, combinados e articulados sem narrativa ou encenação, figuram como pedaços de mundo em suspensão numa densa névoa, engendrando aí um espaço sem bordas.
Em sua produção a artista associa as técnicas tradicionais desse meio àquelas mais atuais, como o transfer e a estamparia a quente (hot stamp), nesses casos sempre a partir da fotografia. Tecidos entre inúmeras veladuras e resultantes do uso destas técnicas de impressão, retratos de pessoas e paisagens restam descorados em suas telas, sem a nitidez das fotografias iniciais. Testemunhas do vestígio das ações a que foram submetidas, oscilam assim entre a perceptibilidade e o recuo para o indefinível.
Sem dúvida a pintura de Adriana Rocha tira primazia da incontestável base material do meio pictórico, de sua substância primeira que são tela e tinta. Movendo-se, entretanto, para além dos limites do discurso ancestral desse meio, a artista, inserida no campo ampliado da arte e da ecologia imagética que o circunscreve, partilha das articulações estéticas de nosso tempo ao apropriar-se da fotografia e afirmar assim a diagnose da falta de especificidade da pintura, evocando desse modo a querela acerca de sua morte.
Rocha traduz em suas telas a consciência de que não há mais uma pintura per se, uma vez que a delimitação de seu campo tornou-se impossível desde sua expansão nos anos 60, quando passou a abraçar elementos estranhos à esfera pictórica, assim como ready-mades, proposições linguísticas ou ainda elementos performativos. A pintura perdeu sua especificidade e se viu, nesta década e nas posteriores, assaltada pelo inflacionário uso das imagens da mass media fundidas ao meio pictórico tradicional, pelo uso de várias formas de pastiche e pela hibridização com novas mídias.

Entretanto, ainda que marcada pela disponibilidade imediata de outros procedimentos, há aqui uma perseverança, uma insistência da pintura, mesmo que a artista, para conquista-las, tenha aberto mão de uma pretensão purista. Reconhecemos na obra de Rocha que “os paradigmas que antes proveram a base das articulações do meio pictórico não foram aniquilados, mas estão disseminados na pintura contemporânea através de um arco expandido entre práticas, materiais e mídias” .
Ambíguas, desse modo, suas telas traduzem e problematizam os embates que configuram o campo contemporâneo do meio pictórico. Ao invés de constituírem entidades contidas em si mesmas, essas obras estabelecem uma rede de relações dialógicas com os aspectos tecnológicos e sociais dentro dos quais nascem e a partir dos quais passam a circular. Em sintonia com seu tempo, o que se testemunha aqui é “ainda uma outra instância no deslocamento da auto-referencialidade para a auto-reflexividade pertinente à história da arte depois de 1970 como um todo. Se outrora a essência das características materiais deste medium demandava ser recorrentemente explorada, as práticas pictóricas hoje engajam seus diferentes contextos a fim de manter em suspensão ‘as passagens internas do quadro para aquelas externas a ele’ ” .
Rocha parte do princípio da apropriação, como ela mesma afirma. “Sempre trabalhei com imagens preexistentes, que ficam depositadas na memória e depois se esvaem; fascina-me a condição humana da impermanência”. São figuras por vezes conhecidas, reconhecíveis, e vindas também de outras fontes, como registros botânicos e paisagens que, ao longo de sua trajetória, sempre reaparecem em seus quadros. “É um alívio não ter posse sobre todas as imagens que eu uso. Não tenho maternidade sobre elas”, relata a artista. Trata-se aqui da adaptação iconográfica de motivos fotográficos, os quais, fundidos com a fatura pictórica e seu respectivo regime temporal, veem negado o direito da imediata tradução do assunto fotografado.

Em suas primeiras telas observamos, soltos na materialidade difusa das camadas de tinta, alguns traços, arremedos de figuras e desenhos de arabescos que, por sua vez, contracenam no mesmo campo visual com manchas densas e informes. Figura, linha, forma, cor, mancha e gesto se articulam num vocabulário em que as relações se estabelecem como ao acaso, sem hierarquia alguma entre si. Aos poucos, com o passar dos anos, surge em sua pintura o interesse por objetos e fragmentos de inúmeras formas e figuras que, como anteriormente, articulam-se em composições desordenadas, sem que se estabeleçam narrativas claras. Numa fase posterior, os fragmentos e formas em suspensão dilatam-se no campo do quadro, ocupando-lhe toda a superfície. O que se vê, então, é o surgimento cada vez mais acentuado de veladuras sobrepostas, translúcidas, descascadas tais como paredes em ruínas, erodidas pelo tempo. Cores desmaiadas se fundem em tramas monocromáticas e, aqui ou ali, vemos surgir uma área cromática mais viva, emprestando um contraste inesperado ao conjunto.
Nos anos mais recentes de sua produção passam a prevalecer as paisagens. Desenhando dobras da memória e submersas na trama e urdidura pictóricas, essas paisagens permanecem ao mesmo tempo como índices da realidade e descoladas dela. Enquadramentos de céu carregados de nuvens, recortes de mares revoltos e horizontes de longínquas encostas deixam-se entrever por entre as camadas desbotadas de cor, apresentando-se, no entanto, como que apartados de sua história, desvinculados dos lugares que lhes deram origem. Constructos imaginários, irreais, as paisagens de Adriana Rocha, insinuando-se em sua pintura como manifestação dos elos que estabelecem com aquilo que lhes é externo, atestam para a condição contemporânea de afrouxamento nas relações entre lugar, relato e identidade.

Vivemos hoje, já se sabe, numa condição de eterno fluxo e de aceleração. A memória, por sua vez, necessita de tempo para poder se formar e essa temporalidade nos foi roubada; trata-se de um mundo que já não permite que “cada qual se veja situado, matriculado, pregado em seu local de enunciação, encerrado na tradição de que supostamente provém” . Os contínuos deslocamentos e a velocidade dos acontecimentos nos distanciam daqueles lugares – antropológicos – nos quais poderíamos nos reconhecer. Numa tal cultura, frágil e desenraizada, “desaparece o chão, e cá estamos nós, compelidos a nos virar com nossos ritos, nossa cultura e nossa história, doravante circunscritos a contextos urbanos padronizados que já não nos devolvem nenhuma imagem”.

Apontando para tal problemática de nosso tempo, esta que diz respeito à falência dos regimes de construção da identidade, Rocha nos propõe pensar sobre como, afinal, fazer frente ao fluxo das imagens descoladas de suas histórias e que flutuam, à guisa de raízes, ao nosso redor.

Regina Johas

30/01/2016