Adriana Rocha
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Às margens do Tapajós
desenhos e pinturas de Adriana Rocha
Um dia de viagem descendo o rio Amazonas. Na proa, a água barrenta junta-se ao céu. Amanhece. Há um risco escuro no horizonte. O torpor da noite foi-se e uma leve brisa anima o dia que, entretanto, só tem uma promessa: um calor de fazer suar. É o verão amazônico em seu extremo.
O São Bartolomeu navega cauteloso. Com a seca, há bancos de areia e o perigo de encalhar. Experiente, o piloto conduz o barco devagar. Do convés, vê-se uma longa franja verde beirando a água. Depois a floresta, como um bordado intrincado, estende-se a perder de vista. Mormaço, mosquitos e uma beleza sem fim...
De tanto em tanto, uma coluna de fumaça denuncia que há queimada na mata. Será que tudo vai acabar em fogo? De repente, parece haver um grande cansaço da natureza. Como por encanto, tudo se aquieta e o sol desce lentamente até tocar o rio. A noite chega de mansinho. Discretamente, alguns passageiros descem ao andar de baixo para beber. Conversa rola até tarde, ao som da viola. Não há quartos, camas ou divisórias. No salão, as redes balançam ao ritmo do motor. Nesse embalo, dorme-se como no berço. Quem fica acordado contempla as estrelas. Os desejos só se realizam em sonhos.
Adriana conta sua viagem e eu reconto do meu jeito. A memória é como uma corda que muitas mãos agarram como no Círio de Nazaré.
Não dá para atracar na vila de Juruti. Na região do baixo Amazonas, estado do Pará, há seis meses não chove e a água do rio baixou, deixando extensa faixa de terra a descoberto. Por isso, é preciso ancorar próximo a um barranco mais à frente. Quem desembarca vai caminhando sobre tábuas lançadas na areia e logo encontra gente do lugar. A confraternização causa um certo reboliço. As crianças gritam de alegria. Ganham canetas hidrocor, lápis de cera e lápis de cor. Como num passe de mágica, essas preciosidades vão sendo tiradas da malinha que veio de São Paulo. A proposta de Adriana é criar um grande livro ilustrado. Os curumins contam suas histórias e no papel recriam personagens e aventuras. São dias de brincadeira e arte. Por fim, as grandes folhas de papel são costuradas com fibra de palmeira. Fica bonito. Já na despedida, a saudade. Na beira do rio, ficam os acenos dos pequenos artistas.
A viagem prossegue. Em poucas horas, a “voadeira” faz o percurso de Juruti a Óbidos. É o ponto mais estreito do Amazonas, onde os portugueses construíram o forte de Santo Antônio dos Pauxis. O singelo casario e a matriz de Sant’Ana atestam a antiguidade do lugar. Hospedada em casa de um velho amigo e médico dedicado à comunidade ribeirinha, Adriana integra-se aos hábitos locais. Em tarde de intenso calor, vai-se refrescar em um igarapé. Mergulhar naquelas águas frias e deixar-se ficar sob o sombreado verde da mata é reencontrar o prazer das coisas essenciais à vida.
Em Santarém, as águas esverdeadas do Tapajós encontram o barrento Amazonas. Suas margens têm sido habitadas pelos humanos desde tempos imemoriais. Território dos remanescentes das tribos Mundurucus e Muirapinimas, a região tem um histórico que remonta às missões jesuíticas que vieram com a colonização. Antes dos padres, os pajés; antes do celular, o tambor; antes a canoa, a pesca no rio, a rede, a oca, a toca, a onça, a mata... antes. Dizem que sob os guindastes do porto há um cemitério indígena.
Em uma hora de estrada chega-se a Alter do Chão. Lugar paradisíaco. Extensas praias de areia fina e branca. Lagoa Verde, Ilha do Amor, Floresta Encantada são nomes sugestivos, que fazem sonhar. Nesse embalo, cresce o turismo atraído pelas belezas do chamado “Caribe amazônico”. A lenda do boto virou festival. Ainda que se dance o carimbo até o amanhecer, nem tudo é alegria. Nas trilhas, sob as árvores, na beira do rio, ouve-se um murmúrio de vozes intimidadas. As águas ficaram turvas e a doença chegou às aldeias, dizem os povos da floresta. O desastre vem da contaminação dos rios por mercúrio, atestam os estudiosos. Sob o olhar complacente das autoridades, o garimpo ilegal do ouro derruba a mata, perfura a terra e envenena os peixes. As populações ribeirinha e indígena desconfiam. Até quando essa agressão à vida continuará existindo?
Entre deslumbrada e apreensiva, Adriana retorna a São Paulo. Sob o impacto do que viu, dedica um ano à série Outras margens. São desenhos e pinturas – registros transfigurados de sua viagem ao Pará. As telas trazem paisagens e os papéis acolhem troncos de árvores mortas. Há uma certa melancolia nesse conjunto, ainda assim sedutor. Sua potência vem da beleza que decai, que lentamente se desgasta. Nesta altura, vale ouvir a palavra de Adriana: “No meu trabalho de pintura, venho lidando com o conceito de ruína como destruição ou apagamento da memória, sendo a própria pintura constituída por um movimento contínuo de construção e destruição. Penso nela como uma reescritura, na qual a imagem restante, imagem construída, traduz essa colagem de tempos e memórias”.
Esse processo de criação diz muito do que a mobiliza. São procedimentos desenvolvidos por ela ao longo dos anos e que hoje distinguem sua obra. Adriana começa invariavelmente por preparar um fundo preto. Sobre esse campo neutro sobrepõe uma imagem derivada de fotografia, mais das vezes, de sua autoria. Depois, entra com cores obtidas por misturas de pigmentos que ela mesma prepara. A seguir, procede a sucessivas lavagens e eventual abrasão da superfície da tela. Nesse fazer e refazer, muito se degrada, porém algo remanesce e ganha novas camadas, em um movimento que pode ser entendido como metáfora do ciclo natural da vida.
Outra particularidade. Na mostra, o desenho, por sua dimensão e força, faz contraponto à pintura. A precisão com que Adriana tece a textura dos troncos em deterioração vem do seu talento no desenho a grafite. O resultado é surpreendente. Embora os desenhos cheguem à minúcia dos detalhes, o olhar se prende ao todo, tanto na forma como no significado. Aqui, o gênero artístico da natureza-morta pode ser interpretado como Vanitas, um recurso utilizado por certos pintores nos séculos XVI e XVII para suscitar uma reflexão moral sobre a transitoriedade da vida. Hoje, olhamos esses grandes troncos como signos da destruição da floresta, promovida pela exploração desmedida dos recursos naturais.
Maria Alice Milliet
Curadora
Setembro, 2025